“Sabes eu acho que todos fogem de ti prá não ver
A imagem da solidão que irão viver
Quando forem como tu
Um velho sentado num jardim”
in Velho, Mafalda Veiga

O ciclo da vida humana teima em resistir à sua forma circular e quer, por tudo, estender-se linear por tempo indeterminado. Não encerrar. Não acabar. Não envelhecer. Não morrer. Enquanto sociedade, resistimos e lutamos com todas as forças humanas e, muitas vezes, desumanas, contra a inexorável passagem do tempo, no corpo … Outrora, chegar a velho era um acontecimento! Aplicando o olho mercantil que rege os tempos modernos, a raridade desse lugar atribuía um valor inestimável ao velho. O velho simbolizava a sabedoria, a experiência de vida, aquele que continha todas as respostas, o contador de histórias, o tecelão do passado, o guardador de memórias. Em Portugal, hoje os velhos são muitos: há 182 idosos para cada 100 jovens.1

No seu livro, A última solidão, a enfermeira Carmen Garcia retrata o que é ser velho hoje em Portugal. Desde logo, a autora aproxima-nos de cada um dos velhos que acompanhou dando-lhes nomes: Margarida, Custódio, Maria do Rosário, Antónia, João, Rosa, Ildo, Martinho, Emília, José Joaquim, Olímpia, Rui, Vitória, Chico. Nenhum deles se quer anónimo e invisível. Recebemos o primeiro princípio de bem cuidar nesta fase de vida, ser velho não é sinónimo de perda de individualidade. Mais ainda, acrescenta que os idosos são uma espécie de matrioscas da vida. Porque há neles muitas vidas. Uma dentro da outra, da outra e da outra.

Outro princípio de bem cuidar na velhice muito evidente ao longo da leitura do livro, realçado várias vezes, tem que ver com a não infantilização dos idosos. Sonegar ao velho a sua capacidade de escolher, de se manifestar, de ser ouvido, de cuidar e de amar é anular cabalmente a sua essência e, por conseguinte, dissolver a sua existência. É aproximá-lo de uma morte antecipada. O uso de diminutivos, o tratamento na segunda pessoa do singular, o ralhar, o repreender como se de crianças se tratassem são más práticas que precisam de ser corrigidas no cuidado aos mais velhos.

As histórias de vida da Maria do Rosário e do José Joaquim são particularmente tocantes. A Maria do Rosário adormeceu para a vida quando o seu filho pequeno morreu. Ela abandonou-se, não suportava viver sem ele. Certo dia, quatro décadas depois, acordou. Acordou com demência. A dor que sentia no seu coração só tolerava despertar quando ela mesma fosse capaz de viver “inconsciente” da perda que tivera. O José Joaquim traz-nos as dificuldades dos velhos que, para além da demência, têm também deficiência. Os velhos que sofrem de demência continuam a caminhar descalços sobre a areia quente da Terra de Ninguém. Saberemos verdadeiramente cuidar, enquanto sociedade, quando a nossa identidade é transfigurada pelo compromisso cognitivo irreversível?

Contando a história do Custódio – era cego, mas foi a ele que nunca ninguém o viu – a autora traz-nos a questão da solidão nesta fase de vida. Custódio representa de uma forma metafórica, ainda que real para ele próprio, a invisibilidade e o desinteresse que a sociedade tem para com os idosos. Os velhos nos lares metamorfoseiam-se com os sofás onde persistem no tempo, tornando-se um só. Raramente são chamados à vida. A curiosidade empática pelo lugar que ocupam é fraca em nós. Os velhos representam a perda do fazer e do ter em grande medida, mas eles ainda são e estão. Mas para isso precisam de nós. A relação humana é a maior fonte de sentido de vida nas pessoas mais velhas, por isso, a Carmen refere que a velhice só é negra quando profundamente marcada pela solidão. E, no entanto, ao longo do livro, percebemos que a solidão dos vários velhos que vamos conhecendo é oceânica, é a última e a mais terrível.

Portugal é um país de velhos e nós sabemos muito pouco sobre quem eles são …

GERMEN, Grupo de Estudos em Medicina Narrativa
Susana Magalhães e Manuela Bertão

1Dados da PORDATA 2021