Este pequeno grande romance de Lev Tolstoi foi primeiramente publicado em 1886, altura em que Tolstoi saía de uma crise moral que o encaminhou para um despertar espiritual e o converteu ao Cristianismo. Esta circunstância da sua vida pessoal é de suma importância para um entendimento mais profundo de todo este romance, quer da sua estrutura, quer da sua temática.

O título desta meta-narrativa convoca a um duplo olhar, remetendo quer para a morte única e singular de Ivan Ilitch, quer para a nossa própria condição humana de finitude e fragilidade. A singularidade da personagem principal espelha a nossa própria singularidade; a morte inscrita no romance ecoa a nossa experiência de mortalidade. A morte de Ivan Ilitch pode ser perspetivada como o dobrar dos sinos que nos adentra.

O livro está dividido em 12 minicapítulos. O número 12 assume um simbolismo interessante: são 12 os meses do ano; são 12 as horas no mostrador do relógio analógico. O tempo. O tempo cronológico (Cronos) e o tempo vivencial (Cairos). O tempo que nos foge das mãos quando a vida nos vai escapando, dia após dia, do corpo para a doença. O tempo que liga o início ao fim e o fim ao início. Destaca-se o fim inscrito no início da narrativa, com Ivan Ilitch já morto no primeiro capítulo, terminando no último capítulo com Ivan a repetir na sua alma, acabou-se a morte, já não existe.

Ao longo deste pequeno livro, Tolstoi retrata de uma forma exímia as grandes questões de quem adoece grave e fatalmente. Ivan Ilitch, le phénix de la famille, procurador bem-sucedido, casado, com uma vida fácil, agradável e decente, diante da sua morte, essa grande filósofa, interroga a forma como levou a cabo o seu viver. O arrependimento, que pode ser tão frequente nesta altura em que a vida se esfuma, assombra-o e interpela-o de uma forma pungente, Talvez eu não tenha vivido como devia? Mas como, se fiz tudo como deve ser? Este arrependimento central e derradeiro esmaga o leitor, também ele humano e mortal, e acompanha Ivan Ilitch até ao último suspiro. Reconhecemos ao longo de todo o livro o brutal sofrimento existencial do qual Ivan Ilitch padece à medida que compreende a vida que viveu, uma vida de fachada, superficial e pobre em afetos. O corpo de Ivan deteriora-se notavelmente, ao mesmo tempo que o seu despertar espiritual cresce, cresce, cresce. Ele terá vivido tudo como deve ser, como a sociedade pedia, mas não como ele próprio era. Este sofrimento existencial é invisível ao médico — “o médico disse que os sofrimentos físicos dele eram horríveis, e isso era verdade; mas mais horríveis que os sofrimentos físicos eram os sofrimentos morais, que eram o seu principal tormento” – e invisível à esposa e ao filho, quando no leito da morte procurava a redenção, Queria ainda dizer “perdão”, mas disse “permissão” e, já incapaz de corrigir, agitou a mão sabendo que seria entendido por aquele que o devia entender.

A capacidade de ouvir atentamente a narrativa da pessoa doente enquanto história de um corpo vivido, e não apenas enquanto diagnóstico de um corpo objeto, e a capacidade de dar sentido à experiência deste encontro terapêutico, permitiriam afiliar Ivan Ilitch e os seus cuidadores, aumentar o autoconhecimento de cada um e enraizar esta relação na comunidade onde ela se inscreve. A negação da morte, consubstanciada na negação da fragilidade, apaga o reconhecimento da Vulnerabilidade do próprio e do outro, com impacto no modo como Ivan é cuidado.

Tolstoi é visionário na forma como descreve a experiência da doença grave. Naquela época, ainda não se tinha iniciado o movimento moderno de Cuidados Paliativos e, no entanto, este pequeno livro é um compêndio vivencial desta abordagem do Cuidar. O escritor russo retrata de uma forma magistral as dimensões do sofrimento humano: física, emocional, familiar, social e espiritual. É de uma precisão inquietante. Através da voz de Ivan conhecemos os múltiplos desafios que quem está a morrer enfrenta: a degradação da sua autoimagem (olhou com horror as suas coxas nuas, enfraquecidas); a solidão dos moribundos (tem de viver assim à beira da morte sozinho, sem uma única pessoa que o compreenda); a ausência de intimidade (seja como for, assim nunca mais te curas e só nos atormentas); as fases do luto no processo de aceitação da doença e da sua própria morte; a noite escura da alma (Que é que queres? De que é que precisas? – repetiu para si mesmo. – De quê? – De não sofrer. De viver); a conspiração do silêncio (Aquilo que mais o atormentava era a mentira, aquela mentira que por qualquer razão era aceite por todos, segundo a qual ele estava apenas doente e não estava a morrer); a necessidade de verdade (Essa mentira à volta dele e no seu íntimo era o que mais envenenava os últimos dias de vida). Também sem o saber, Tolstoi descreve o que mais tarde Cicely Saunders designaria por dor total – “Neles via-se a si próprio, tudo aquilo para que tinha vivido e via claramente que tudo aquilo estava mal, tudo aquilo era um horrível e enorme engano que ocultava a vida e a morte. Essa consciência aumentou, duplicou os seus sofrimentos físicos. Gemia e agitava-se e puxava a roupa.”

Tolstoi recorda-nos que da necessidade de repensarmos como humanizamos o tempo e o espaço nos lugares onde cuidamos, para que quem morra, embora sozinho na sua morte, não morra sozinho, mas sim acompanhado. A atitude da família e do médico contrasta escandalosamente com a atitude do criado Guerássim: “A saúde, a força e o vigor em todas as outras pessoas ofendiam-no; só a força e a vitalidade de Guerássim não afligiam Ivan Ilicth, mas tranquilizavam-no.” A família e o médico projetam em Ivan Ilicth a incapacidade de olhar de frente para a sua finitude, que é também a deles, culpando-o da situação em que se encontrava. Por outro lado, Guerássim, jovem camponês, talvez mais próximo das inexoráveis leis naturais, olhava Ivan Ilitch com dignidade e colocava-se (a si mesmo e à sua vitalidade) ao serviço da forma mais nobre e humana através da arte de cuidar. Guerássim torna-se, assim, a alma dos Cuidados Paliativos.

GERMEN, Grupo de Estudos e Reflexão em Medicina Narrativa

Susana Magalhães e Manuela Bertão
27 de Janeiro de 2023