Que lições da pandemia para o futuro do sistema de saúde?

Estes primeiros tempos da pandemia por covid-19 permitem-nos já tirar algumas lições para o futuro do sistema de saúde, que eu vou condensar em nove.

dr luis camposApesar de ainda estarmos no início de uma longa caminhada creio que estes primeiros tempos da pandemia por covid-19 nos permitem já tirar algumas lições para o futuro do sistema de saúde, que eu vou condensar em nove.

A primeira lição é que a possibilidade de uma pandemia era previsível e temos que nos preparar quer para a possibilidade de novas ondas desta pandemia quer para a emergência de novas pandemias. Eu era director do Serviço de Urgência do HSFX, em 2003, quando tivemos que nos preparar para a SARS, no ano seguinte tivemos a gripe aviária (H5N1), em 2009 a pandemia da gripe A,  (H1N1), em 2012 o MERS-COV, em 2014 a ameaça de Ébola, que surgiu outra vez em 2016 e em 2015 o Zika vírus. Sempre tivemos pandemias ou ameaças de pandemia, mas a degradação ambiental e a perda da biodiversidade tem aumentado esse risco, particularmente desde há duas décadas. A existência de planos de contingência e de catástrofe, a manutenção de uma reserva nacional estratégica de equipamentos para emergências, o reforço da capacidade de produção de medicamentos num laboratório nacional, a contratação de pessoal deficitário, são algumas das medidas que têm que ser desde já equacionadas. Depois temos que corrigir alguns défices estruturais como o número de camas de cuidados intensivos: temos cerca de 5,2 camas por 100 mil habitantes quando a média europeia é de 11,5.

Mas existe um esforço que tem de ser feito que é o de manter em paralelo cuidados de saúde às pessoas que sofrem de outras patologias, porque nesta pandemia por cada pessoa que morre de covid-19, estão a morrer cinco vezes mais pessoas por outras doenças.

A segunda lição: que sorte termos um Serviço Nacional de Saúde e que sorte termos profissionais tão competentes e dedicados! É angustiante observar a iniquidade no acesso a cuidados de saúde e na mortalidade por covid-19 em países com uma medicina privada predominante como os EUA, o Brasil, a América Latina ou África, onde os pobres e as minorias étnicas têm uma mortalidade maior por covid-19. A resposta do nosso SNS foi competente e eficaz mas, na verdade, não fomos submetidos a um teste de stress máximo, senão as debilidades geradas por algum desinvestimento no SNS ficariam mais expostas. É imperioso fortalecer o SNS, torná-lo atractivo para os profissionais e para os doentes, não deixar que ele se transforme num serviço de saúde residual para os mais pobres. Isso implica contratação de pessoal, remuneração justa dos profissionais, actualização tecnológica e organizacional e melhor gestão, eventualmente através da separação da função de prestação de cuidados do financiamento. Naturalmente que qualquer plano de contingência deve contar também com os recursos do sector privado e social, assim como os recursos que existem na comunidade.

A terceira lição é a importância de uma rede de saúde pública eficaz. Os médicos de saúde pública foram e são imprescindíveis e a sua relevância foi demonstrada na resposta esta pandemia. É uma especialidade envelhecida e uma rede que aguarda há muitos anos uma reforma que agora se mostra urgente.

A quarta lição é a importância da saúde mental. Em alturas de crise os suicídios, a depressão, a ansiedade e outros problemas mentais aumentam significativamente. O encerramento dos hospitais psiquiátricos atirou muitos doentes para as cadeias ou para debaixo das pontes porque não foram criadas alternativas. A implementação de uma rede de saúde mental para dar resposta às necessidades deste tipo de cuidados é inadiável.

A quinta lição tem a ver com a necessidade de introduzir mais flexibilidade nas estruturas de saúde e na sua organização para responder a estas variações brutais nas patologias e no acesso. Esta flexibilidade abrange muitas dimensões, a começar pelo design hospitalar e doutros edifícios de saúde, em que a possibilidade de readaptação de áreas, de escalabilidade, de diferenciação de circuitos, de isolamento, entre outras, tem que ser garantida. Infelizmente, neste capítulo, cometemos erros como na reforma das urgências, em 2008, quando retiramos os hospitais mais pequenos da rede hospitalar e os entregamos aos cuidados continuados, o que retirou aos hospitais de maior dimensão uma retaguarda preciosa.

A flexibilidade passa também pelo planeamento dos recursos humanos. A dedicação e disponibilidade dos médicos que têm estado na linha da frente, dos enfermeiros, dos assistentes operacionais, do pessoal da logística e muitos outros foi excepcional, mas quero aqui destacar o papel dos cuidados primários e da Medicina Interna. A rede de cuidados primários foi muito eficiente no acompanhamento de milhares de doentes que não necessitaram ser internados. Mas nos hospitais a Medicina Interna deu o exemplo da versatilidade e multipotencialidade que caracteriza esta especialidade, qualidades tão preciosas para fazer face a esta e a futuras pandemias. Na realidade os internistas garantiram a admissão dos doentes nas urgências, a assistência nas enfermarias e ainda reforçaram os cuidados intensivos quando foi necessário. A grande maioria dos doentes com covid-19 foram internados em serviços de Medicina Interna, onde os internistas, com ou sem ajuda doutras especialidades, assistiram estes doentes. Quer isto dizer que temos que ter mais internistas nos hospitais porque é a única especialidade que permite manter versatilidade nos recursos humanos médicos para fazer face à incerteza destas epidemias e pandemias.

Em relação à organização, muito haveria para dizer mas destaco esta fragmentação dos hospitais em silos dedicados a órgãos ou sistemas, onde os directores são os donos das camas e onde é cada vez mais difícil internar os doentes idosos e com multimorbilidade. É uma estrutura rígida, vertical e inadequada para fazer face à admissão de doentes urgentes, que é sempre aleatória em termos de patologias. A alternativa seriam áreas comuns departamentais onde fossem admitidos todos os doentes médicos urgentes e onde a Medicina Interna coordenasse os cuidados a estes doentes. Pelo lado positivo refiro o papel das equipas de hospitalização domiciliária, também elas lideradas pela Medicina Interna, que permitiram manter em casa muitos doentes, libertando camas hospitalares, preciosas nestas alturas.

A sexta lição tem a ver com a falta de articulação entre os vários níveis de cuidados. Esta pandemia exigiu uma coordenação entre a proteção civil, a emergência pré-hospitalar, os hospitais, os cuidados primários, os cuidados continuados, os lares e a assistência social, ao nível local, regional e nacional. A realidade é que todas estas estruturas estão separadas, comunicam com dificuldade e têm cadeias de responsabilidade distintas. Desde há muito que denunciamos a forma como continuamos a tratar os nossos idosos, frágeis, com múltiplas doenças, através das urgências, de uma forma fragmentada, episódica e reactiva. A integração dos vários níveis de cuidados é o grande desafio que temos pela frente para podermos dar resposta aos doentes crónicos. As vantagens e a premência desta integração ficou bem demonstrada na resposta a esta pandemia.

Esta integração tem de abranger o sector social porque é cada vez mais difícil separar os problemas de saúde dos problemas sociais. Os hospitais estão transformados em centros de resolução dos problemas sociais dos doentes. Ainda há dias a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares em conjunto com a Sociedade Portuguesa de Medicina Interna apresentou os resultados do Barómetro de Internamentos Sociais onde se denunciava que em Fevereiro permaneciam internados nos hospitais do SNS 1551 doentes, depois de terem tido alta, o que representava um custo anual de 184 milhões de euros. Este problema vai crescer muito rapidamente e de forma avassaladora. Estima-se que nesta crise a queda do PIB possa ir até aos 10% ou mais, desde o início da pandemia até ao fim de Abril cerca de 76 mil pessoas ficaram sem emprego, o Banco Alimentar está a distribuir 440 mil refeições diárias. Os pobres vão ficar mais pobres, muitos novos pobres vão aparecer, todos vão perder rendimentos, a coesão social vai ficar mais frágil e as iniquidades vão ser exacerbadas. A pobreza induz mais comportamentos de risco, mais doenças crónicas e mais distúrbios mentais. Pensar e organizar em conjunto a resposta aos problemas de saúde e problemas sociais é uma necessidade que esta pandemia veio acentuar. A criação de sistemas locais de saúde e assistência social, que unissem os vários níveis de cuidados e o sector social sob a mesma responsabilidade e com o mesmo orçamento, centrados numa determinada população seria uma forma avançada de conseguir esta integração.

Mas a crise que resulta desta pandemia vai trazer inevitavelmente uma nova fase de escassez de recursos e diminuição do investimento. Apesar de dizermos que o SNS deve ser reforçado vamos ter que fazer um esforço para diminuir o desperdício e aumentar a eficiência. Criar alternativas mais baratas e mais adequadas para os doentes com internamentos inapropriados, a aposta na Medicina Interna e nos cuidados primários, a compra centralizada dentro do SNS, evitar a redundância de exames através de um registo de saúde electrónico único e combater o sobrerastreio, o sobrediagnóstico e o sobretratamento são formas de reduzir o desperdício no SNS.

A sétima lição que resulta desta pandemia foi o enorme impulso que a telemedicina sofreu: quanto tempo e dinheiro se economiza por passarmos a fazer reuniões com meios digitais, por provarmos que muitas das consultas que fazemos podem ser transformadas em teleconsultas. No entanto algum investimento tem que ser feito e sobretudo ter a consciência de que as tecnologias de informação e comunicação são uma ferramenta indispensável para criar redes mas, por si, não integram quem se quer manter separado nem fazem comunicar quem não quer comunicar.

A oitava lição tem a ver com comunicação: as potencialidades das campanhas de comunicação em saúde têm sido subaproveitadas e isso também aconteceu durante esta pandemia, onde, mais que nunca se exigia clareza e profissionalismo na comunicação.

A última lição que resulta desta pandemia mostrou é a extraordinária capacidade que demonstrámos de mudança e adaptação: foi notável a forma como ficámos confinados e mantemos o distanciamento social, como ateliers de moda começaram a confeccionar máscaras, como fábricas de automóveis se reconverteram para produzir ventiladores, como uma mesquita se transformou em local de acolhimento de refugiados infectados, como hordas de pessoas começaram em teletrabalho, como rapidamente nos habituamos a reunir por Zoom, mas nada está escrito, nada é garantido, mudar exige uma visão, exige coragem, líderes à altura dos tempos e o envolvimento de todos nós.

Artigo de Opinião de Luís Campos
Presidente da Comissão de Qualidade e Assuntos Profissionais da Federação Europeia de Medicina Interna

In Público

(03/06/2020)