Prevenção e Tratamento do Tromboembolismo Venoso em doentes com COVID-19

O Núcleo de Estudos de Doença Vascular Pulmonar da SPMI, preparou um documento com Recomendações referentes à Prevenção e Tratamento do Tromboembolismo Venoso em doentes com COVID-19.

Introdução

Uma nova espécie de coronavírus, designada por SARS-Cov-2, que surgiu no final de 2019 na província de Hubei na China, atingiu proporções pandémicas no primeiro trimestre de 2020. A doença a que dá origem denomina-seCOVID-19 e é, sobretudo, uma doença respiratória aguda denominada COVID-19, com gravidade em cerca de 20% dos indivíduos atingidos, 5% dos quais evoluem para estado crítico [1].

A par do atingimento respiratório, está descrita a predisposição a complicações trombóticas, que parece suplantar o risco inerente ao internamento em cuidados intensivos. De fato, a COVID-19 associa-se a inflamação, hipoxemia, imobilidade e coagulação intravascular
disseminada – importantes fatores de risco para tromboembolismo venoso [2].

Os distúrbios da coagulação parecem ser comuns e associam-se a um prognóstico desfavorável. Estudos observacionais chineses e italianos demonstraram elevação analítica do valor de d-dímeros e fibrinogénio, prolongamento do tempo de protrombina e do tempo de romboplastina parcial ativada [2] [3]. Se estes marcadores servem de surrogate para trombose, é assunto de debate [2]. A evidência observacional até então sugere uma tendência trombótica acrescida associada à COVID-19; sendo as manifestações hemorrágicas, por outro lado, raras. Estas premissas são a base para as recomendações de tromboprofilaxia com doses standard e até doses aumentadas, numa fase em que a evidência científica não é robusta – isto é, assente em consensos.

Diversas sociedades científicas têm emitido recomendações à luz dos dados disponíveis. Este documento pretende resumir essas recomendações e emitir um parecer aplicável à realidade portuguesa, não substituindo o senso clínico e recomendações para situações específicas, nomeadamente o internamento prolongado em ambiente de intensivos e necessidade de terapêuticas de fim-de-linha como ECMO (Oxigenação por Membrana Extracorporal).

Neste documento o termo “recomenda-se” significa evidência científica forte e consenso de peritos unânime, o termo “sugere-se” significa a evidência científica fraca e/ou ausência de consenso de peritos.

1. Tromboprofilaxia

Recomendação 1

Recomenda-se tromboprofilaxia farmacológica com heparina de baixo peso molecular (HBPM) a todos os doentes com COVID-19 admitidos em internamento hospitalar, na ausência de contraindicações absolutas.

Justificação
Os doentes admitidos no hospital por doença médica aguda têm um risco aumentado de tromboembolismo venoso [4]. O uso apropriado de profilaxia reduz este risco [5]. A infecção por COVID-19 é um fator de risco para TEV único. Para além da habitual tríade de Virchow (lesão endotelial, estase/imobilização e estado de hipercoagulabilidade) associa-se a anomalias da coagulação, designadas de coagulopatia associada ao COVID-19 [6], [7] . Assim, está recomendada tromboprofilaxia farmacológica com HBPM a todos os doentes admitidos no
hospital com COVID-19 [6] [2] [8] [9]. A título de exemplo: enoxaparina 40mg/dia ou tinzaparina 3500 UI/dia [6] [9].

Recomendação 2

Recomenda-se o ajuste da dose profilática de HBPM ao índice de massa corporal (IMC) ou peso, de acordo com o protocolo local. Não esquecer o ajuste à função renal.

Justificação
A obesidade (IMC >30 Kg/m2) é um fator de risco independente para TEV [4]. Nos procedimentos cirúrgicos – em que o risco de TEV é considerado elevado – é usual o aumento da dose profilática de HBPM [10]. Apesar da falta de evidência científica, assume-se que os doentes obesos com COVID-19 tenham um risco superior, razão pela qual que se sugere o aumento da dose profilática [2] [9]. Existem vários protocolos: por IMC (por exemplo IMC inferior a 40 Kg/m2 enoxaparina 40 mg/dia e superior a 40 Kg/m2 enoxaparina 40mg 12/12horas) ou por peso (por exemplo: < 49 kg dalteparina 2500 UI/dia, 50- 99 kg dalteparina 5000 UI/dia, 100-139 kg 7500 UI/dia) [9] [11].

Recomendação 3

Sugere-se considerar aumentar a dose profilática para uma dose intermédia, em alguns doentes admitidos nos cuidados intermédios ou intensivos. Existem diferentes esquemas, um dos mais frequentemente usados é a duplicação da dose profilática habitual.

Justificação
Apesar do uso de profilaxia, existem vários estudos que reportam uma elevada incidência de complicações trombóticas nos doentes COVID-19 internados em unidades de cuidados intensivos [12] [13] [14]. Por este motivo, ainda que sem evidência cientifica robusta, alguns centros advogam profilaxia com dose profilática intermédia, especialmente nos doentes com doença grave (insuficiência respiratória grave com indicação de ventilação invasiva ou oxigenoterapia de alto fluxo, score “sepsis induced coagulopathy” > 4) ou elevação marcada de d-dímeros (sem limiar ainda definido) [2] [12] [13]. Existem vários esquemas, um dos mais usados é a duplicação (2x) da dose profilática habitual: por exemplo para um doente com IMC inferior a 40 Kg/m2 enoxaparina 40mg 12/12horas [2] [12].

Recomendação 4

Recomenda-se que nos doentes com trombocitopenia induzida por seja prescrita fondaparinux.

Justificação
Nos doentes internados com trombocitopenia induzida por heparina sugere-se tromboprofilaxia farmacológica com fondaparinux 2,5mg/dia [6] [2] [9]. Não existe evidência relativa ao ajuste de dose no doente obeso.

Recomendação 5

Recomenda-se considerar tromboprofilaxia mecânica nos doentes com risco hemorrágico elevado.

Justificação
Os doentes com risco hemorrágico elevado constituem principalmente aqueles com evidência de hemorragia ativa (exemplo, úlcera gastroduodenal), hemorragia major nos três meses precedentes à admissão hospitalar, trombocitopenia grave (plaquetas < 50 x 109/L) ou insuficiência hepática (INR > 1.5). Neste subgrupo de doentes está contraindicado o uso de profilaxia farmacológica, pelo que deve ser considerada tromboprofilaxia mecânica (meias elásticas ou compressores mecânicos), de acordo com o protocolo local [9].

Recomendação 6

Sugere-se estender profilaxia (até máximo de 30-45 dias) nos doentes com risco elevado de TEV e baixo risco hemorrágico aquando de alta para o domicílio .

Justificação
Os doentes com risco elevado de TEV e com baixo risco hemorrágico podem beneficiar de extensão da profilaxia de TEV aquando de alta para o domicílio (até máximo de 30-45 dias).[6] [2] [8]. Consideram-se doentes com risco elevado de TEV aqueles com mobilidade reduzida,comorbilidades como doença oncológica e, segundo alguns autores, d-dímeros elevados (valores 2x o normal) [8]. Sugere-se administração de HBPM em dose profilática standard (40mg/dia) ou rivaroxabano 10mg/dia [6] [2].

Recomendação 7

Sugere-se instituir tromboprofilaxia farmacológica em doentes com COVID-19 ligeiro tratados em ambulatório com mobilidade reduzida e/ou TEV prévio ou doença oncológica ou cirurgia prévia recente.

Justificação
Na ausência de evidência científica robusta e considerando o risco trombótico acrescido
pela COVID-19 deve ser ponderada a instituição de tromboprofilaxia farmacológica em doentes com COVID-19 ligeiro e fatores de risco como: mobilidade reduzida, TEV prévio, doença oncológica ou cirurgia prévia recente [6] [8].

2. Abordagem do TEV

Recomendação 1

Sugere-se privilegiar a clínica, em prejuízo de scores de probabilidade clínica e determinação de d-dímeros no diagnóstico de TEV em doentes com COVID-19.

Justificação
Não existem até à data estudos de validação dos scores de probabilidade clínica desenvolvidos para o TEV agudo em doente com COVID-19, pelo que não podem ser aplicados com segurança nestes doentes.
A elevação de produtos de degradação da fibrina, como os d-dímeros, é um achado comum em doentes infetados com COVID-19 [7]. Consequentemente, estes não devem ser valorizados, nem conduzir a investigação adicional específica na ausência de clínica de possível evento de TEV (sintomas de TVP, agravamento respiratório desproporcional ou sem aparente justificação e/ou agravamento de disfunção cardíaca direita de novo).

Recomendação 2

Sugere-se o diagnóstico presuntivo de TEV com início imediato de terapêutica adequada à gravidade clínica perante a impossibilidade de realização de exame de imagem que confirme a suspeita de TEV no doente COVID-19 com baixo risco hemorrágico.

Justificação
O diagnostico de TEV no doente COVID-19 pode ser desafiante por motivos inerentes ao doente (nomeadamente estabilidade clínica ou doente em posição de decúbito ventral), indisponibilidade de meios complementares de diagnóstico, ou dificuldade de valorização de exames complementares como d-dímeros ou ecocardiograma (pela presença frequente de disfunção ventricular direita em doente com ARDS) [2]. Perante a elevada suspeita clínica – em doentes de baixo risco hemorrágico -, pode-se considerar o início de tratamento adequado dirigido à gravidade clínica do evento TEV de forma empírica [2] [8].

Recomendação 3

As principais recomendações para o tratamento do TEV devem de ser seguidas em doentes com COVID-19. Recomenda-se instituir terapêutica anticoagulante parentérica (Heparina Não Fracionada (HNF) ou HBPM em dose bidiária) nos doentes em que o quadro clínico justifique internamento.

Justificação

A anticoagulação é o tratamento de primeira linha do TEV, estando recomendada a escolha de anticoagulante individualizada às comorbilidades do doente e gravidade clínica [4] [15]. Dada a imprevisibilidade de evolução clínica de um doente internado com COVID- 19, é recomendado iniciar anticoagulação parentérica por apresentar várias vantagens face aos anticoagulantes orais: semi-vida curta, possibilidade de monitorização e ausência de interação com os principais fármacos em uso para o tratamento da COVID-19 [2] [8].

Dado o prolongamento do aPTT ser um achado frequentemente descrito em doentes com COVID-19, sugere-se privilegiar o uso de HBPM em doentes com clearance de creatinina > 30 ml/min [16] [17]. Em doentes com lesão renal aguda e taxa de filtração glomerular estimada entre 15-30ml/min, sugere-se anticoagulação com HNF, recorrendo a normogramas de anti-Xa para a sua monitorização devido ao risco de resistência a heparina reportada em doentes com COVID-19 [17]. Na impossibilidade de monitorização com anti-XA sugere-se monitorização com apTT, e perante suspeita de resistência à heparina (necessidade de > 35 000 U de heparina/ 24 horas), optar por HBPM com controlo laboratorial de níveis de anti-Xa [16] [17].

Recomendação 4

Perante o risco hemorrágico elevado descrito em doentes COVID-19, recomenda-se que terapêutica trombolítica sistémica seja reservada para casos confirmados, ou de suspeita elevada de EP de alto risco. Quando equacionada, recomenda-se a dose e esquema habitual de trombolítico sistémico, não estando recomendado o uso de esquemas com meia dose de trombolítico.

Justificação

O uso de terapêutica trombolítica sistémica para o tratamento de EP sem instabilidade hemodinâmica está associado a elevado risco de hemorragia major, nomeadamente hemorragia intracraniana [4] [18]. O seu uso em doentes COVID-19 carece de evidência, pelo que deve ser reservado para casos de EP com instabilidade hemodinâmica.

Embora exista relatos de casos de tratamento de EP em doentes COVID-19 e ARDS com recurso a meia dose do trombolítico alteplase (18), a melhoria clínica observada a nível de oxigenação foi apenas transitória, pelo que não se recomenda o uso sistematizado de terapêutica trombolítica em doentes COVID-19 com ARDS ou na presença de microtrombos pulmonares [17] [19] .

Recomendação 5

Terapêuticas interventivas – nomeadamente colocação de filtro na veia cava inferior e intervenções dirigidas por catéter – devem de ser limitadas em doentes com COVID-19, e reservadas para casos específicos.

Justificação

Conforme as principais recomendações para o tratamento do TEV, deve ser evitada a colocação indiscriminada de filtros na veia cava inferior, devendo ser reservada para casos de recidiva sob anticoagulação eficaz e cenários clínicos de contraindicação absoluta à anticoagulação [8]. Devido à falta de evidência e recomendações até à data em relação às intervenções dirigidas por catéter em casos de EP de alto risco e risco intermédio alto em doentes com COVID-19, estas intervenções devem ser reservadas para doentes com EP de alto risco com contraindicações absolutas para trombólise sistémica [4].

Recomendação 6

Recomenda-se privilegiar o uso de anticoagulantes orais diretos (DOACs) ou HPBM, na ausência de contraindicações absolutas, na profilaxia secundária do TEV.

Justificação

O uso de DOACs ou HPBM minimiza o contacto com serviços de saúde para determinação e ajuste de INR [8] [17].

Recomendação 7

Sugere-se no evento TEV provocado pela infecção COVID-19 e na ausência de contraindicações, um mínimo de 3 meses de anticoagulação.

Justificação

Considerando o quadro de infeção por COVID-19 um fator de risco major, admite-se que o risco de recorrência é baixo, pelo que propõe manter, na ausência de contraindicações, anticoagulação como profilaxia secundária durante pelo menos 3 meses [4]. Após este período, a decisão de manter anticoagulação como profilaxia secundária deve ser considerada caso a caso, nomeadamente na suspeita de evolução para doença tromboembólica crónica [2].

(29/05/2020)

Documento elaborado por:

Ana Oliveira Gomes, Hospital Garcia de Orta, Assistente Hospitalar de Medicina Interna
Carolina Guedes, Hospital Pedro Hispano – Unidade Local de Saúde de Matosinhos, Assistente Hospitalar de Medicina Interna
Inês Silva Furtado, Centro Hospitalar do Porto, Assistente Hospitalar de Medicina Interna
Melanie Ferreira, Hospital Garcia de Orta, Assistente Hospitalar de Medicina Interna
José Meireles, Centro Hospitalar Entre o Douro e Vouga, Assistente Hospitalar de Medicina Interna

 

Bibliografia:

[1] G. Deng, “Clinical determinants for fatality of 44,672 patients with COVID-19,” Critical Care, 2020.
[2] “BTS Guidance on Venous Thromboembolic Disease inpatients with COVID-19,” 4 May, 2020.
[3] M. Ranucci e A. Ballotta, “The procoagulant pattern of patients with COVID-19 acute respiratory distress syndrome,” Journal Thrombosis Haematosis, 2020.
[4] S. V. Konstantinides, “2019 ESC Guidelines for the diagnosis and management of acute pulmonaryembolism developed in collaboration with the European Respiratory Society (ERS),” European Heart Journal, pp. 1-61, 2019.
[5] A. Leirozorovicz, “Randomized, placebo-controlled trial of dalteparin for the prevention of venous thromboembolism in actely ill medical patients,” Circulation, pp. 874-9, 2004.
[6] A. Cuker e F. Peyvandi, “Coronavirus disease 2019 (COVID-19): Hypercoagulability,” UpToDate, Apr 29, 2020.
[7] J. M. Connors e J. H. Levy, “Thromboinflammation and the hypercoagulability of COVID- 19,” Journal of Thrombosis and Haemostasis, 2020.
[8] B. Bikdeli, M. V. Madhavan e D. Jimenez, “COVID-19 and Thrombotic or Thromboembolic Disease Implications for Prevention Antithrombotic Therapy and Follow up,” Journal of American College of Cardiology, 2020.
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[10] A. Afsharu, W. Ageno e A. Ahmed, “European Guidelines on perioperative venous thromboembolism prophylaxis. Executive summary.,” European Journal Anaesthesiology, pp. 77-83, 2018.
[11] “Trust, Guy’s and St Thomas NHS Foundation. Action Card: T5-8 Haematological management of patients in ICU with COVID-19,” March 2020.
[12] F. A. Klok, M. H. Kruip e N. M. van der Meer, “Incidence of thrombotic complications in critically ill ICU patients with COVID-19,” Thrombosis Research, 2020.
[13] J. Helms, C. Tacquard, F. Severac e I. Leonard-Lorant, “High risk of thrombosis in patients with severe SARS-CoV-2 infection: a multicenter prospective cohort study,” Intensive Care Med, 2020.
[14] C. Lodigiani, G. Iaoichino e L. Carenzo, “Venous and arterial thromboembolic complications in COVID-19 patients admitted to an academic hospital in Milan, Italy,” Thrombosis Research, pp. 9-14, 2020.
[15] C. Kearon, E. A. Akl e J. Ornelas, “Antithrombotic Therapy for VTE Disease: CHEST Guideline and Expert Panel Report,” CHEST, 2016.
[16] N. Tang, D. Li e X. Wang, “15 N .Tang, D. Li, X Wang, et al, “Abnormal coagulation parameters are associated with poor prognosis imn patients with novel coronavirus pneumonia,” JTH 2020,” Journal Thrombosis Haemostasis, 2020.
[17] G. Barnes e A. Burnett, “Thromboembolism and anticoagulant therapy during the COVID-19 pandemis: interim clinical guidance from the anticoagulation forum,” Journal of Thrombosis and Thrombolysis, 2020.
[18] S. Chatterjee, A. Chakraborty e I. Weinberg, “Thrombolysis ofr pulmonary embolism and risk of all cause mortality, major bleeding, and intracranial hemorrhage: a meta-analysis,” JAMA, pp. 2414-2421, 2014.
[19] J. Wang, N. Hajizadeh e E. Moore, “Tissue plasminogen activator (tPA) treatment for COVID-19 associated acute respiratory distress syndrome (ARDS): a case series,” Journal Thrombosis Haemostasis, 2020.

(29/05/2020)

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