Péssimo argumento para a criação da especialidade de urgência

João Araújo Correia

O SNS é a maior conquista da democracia em Portugal e talvez seja a única área em que nos podemos ombrear com qualquer País do mundo! Tenho a convicção, que os erros cometidos nos últimos anos, que conduziram ás equipas exíguas e desmotivadas dos serviços hospitalares, ainda podem ser corrigidos. Haja coragem política e aconselhamento acerca das medidas estruturais adequadas, dadas por quem tem experiência vivida, sem estar comprometido por interesses corporativos.

O problema das Urgências sobrelotadas, com muitos doentes agudos sem gravidade, tem muitos anos. Continuará a crescer, enquanto os Centros de Saúde não forem obrigados a dar-lhes resposta e os Hospitais virem nos doentes triados como verdes e azuis uma fonte de financiamento. Por isso, periodicamente, lá temos as manchetes dos jornais com as notícias do caos das Urgências, e as filas das ambulâncias á porta, em modo de catástrofe.

Esta crise das Urgências em Portugal, é diferente. As deficiências subiram de nível. Há falta de Especialistas que assegurem a cobertura das escalas em áreas cruciais do atendimento do doente emergente, como é o caso da Obstetrícia ou das Vias Verdes. Não são os Médicos Tarefeiros indiferenciados, contratados pelos Hospitais para resistirem á avalanche diária de doentes, que agora nos faltam. São mesmo Médicos Especialistas, que deixaram o Hospital Público para o Hospital Privado, e dão algumas disponibilidades limitadas para virem trabalhar ao hospital de origem, em regime de tarefa.

Não me cansarei de dizer “até que a voz me doa”, do enorme erro que será a criação duma Especialidade de Urgência. Os defensores intrépidos da ideia, vão dizendo que a maioria dos Países a têm, como se nos devêssemos envergonhar por ficar atrás… Mas, ás vezes poder decidir depois de ver o resultado nos outros é uma vantagem, se conseguirmos ter algum discernimento independente. Nesses Países, a Especialidade de Urgência foi uma necessidade, pois a Medicina Interna quase acabou, e os Cuidados Primários são muito eficientes, resumindo os recursos ao Serviço de Urgência Hospitalares ás Emergências e ao Trauma. Em Portugal, menos de 10% das vindas ao SU têm uma observação médica prévia, e 95% dos internamentos nos Serviços de Medicina fazem-se através da Urgência. É preciso deixar de comparar o que é diferente!

Compreendo a azáfama dos políticos, a tentarem remendar os estragos provocados pelos constrangimentos nas áreas críticas da saúde. Cria-se uma Comissão, que sempre dá algum tempo para tomar fôlego, até que produza um documento salvador! Acredito na bondade do esforço, mas há que ponderar bem no que fazer a curto e médio prazo, sem embarcar em pretensas soluções, com efeito nulo. A criação da Especialidade de Urgência nesta altura, é uma dessas. A Senhora Ministra da Saúde, até é capaz de acreditar que isso pode ajudar a resolver alguns problemas dos Serviços de Urgência. Mas, lamento que o Senhor Bastonário venha a terreiro defender a Especialidade de Medicina de Urgência, usando o argumento da redução da dependência dos Médicos Tarefeiros. É um falso argumento. Não reduzirá os Médicos Tarefeiros indiferenciados de antes e, muito menos, os Médicos Tarefeiros Especialistas de agora. O recurso a esta justificação para a criação duma nova especialidade médica, não prestigia a própria Ordem dos Médicos. É o espelho dos nossos tempos, em que se diz aquilo que se pensa que os outros querem ouvir.

João Araújo Correia – Presidente Cessante da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna

Este artigo foi publicado no jornal Observador

(19/07/2022)