A Acessibilidade na Saúde e o Plano de Recuperação e Resiliência

 

Dizem-me que vêm aí muitos milhões da Europa. Segundo ouvi ao Senhor Presidente da República, será uma oportunidade única para Portugal. Espera-se que seja possível diversificar a economia, e aumentar o valor acrescentado daquilo que é produzido.

É muito desconfortável e inseguro, vivermos da bondade de quem nos visita, ou dos humores de uma empresa estrangeira de automóveis. Mas, para além da economia, é para a saúde que irá uma parte significativa deste dinheiro fresco. Também aqui a aposta é única, e têm de ser certeiras as decisões que sejam tomadas. É claro que temos de investir na inovação tecnológica, com a telemedicina, a telemonitorização e a inteligência artificial, tudo adiado desde a crise de 2008. Mas, querendo tornar compreensível aquilo que é complexo, diria que o objetivo central será o de aumentar a acessibilidade aos cuidados de saúde, em todos os seus níveis, médicos e de exames subsidiários.

Os doentes portugueses, esperam resignados há muitos anos. Conheço vários casos em que se levantam de madrugada, com a esperança de conseguirem uma vaga no Centro de Saúde, porque a doença veio sem avisar. Outros, mais graves ou com menos paciência, acabam no Serviço de Urgência. Nos hospitais, também não se pode ter pressa, mesmo que a ansiedade seja muita. Nalgumas áreas mais do que noutras, aguarda-se meses por um exame, uma consulta ou por uma cirurgia. Foi sempre assim, uma espécie de saga inevitável. Mas, a pandemia piorou tudo ainda mais, e os doentes chegam demasiado tarde!

A capacidade de resposta dum Serviço de Saúde depende, acima de tudo, da disponibilidade do trabalho médico. Por isso, é tão importante uma organização eficiente do horário de trabalho. Com a pandemia, foi permitida a contratação de médicos em Serviços cronicamente deficitados. Mas é preciso não desperdiçar esta oportunidade na resposta que podemos dar, permitindo a dispersão do trabalho médico. O contrato individual de trabalho (CIT) de um médico é de 40 horas, sendo exigido um tempo de urgência de 18 a 24 horas, retiradas do horário base. Às vezes também se autorizam outras funções acessórias, pelo que o tempo médico disponível fica reduzido a menos de metade.

A pedido dos próprios, os Conselhos de Administração apreciam pedidos de horários reduzidos para 20 horas, algumas vezes concedidos pela ameaça velada de perda de mais um especialista, de viagem para a privada. Por outro lado, por uma lei anacrónica e sem sentido, só é permitido pagamento de horas extraordinárias ao médico com CIT, depois de cumpridas 144 horas de trabalho no período de 8 semanas. Por isso, qualquer turno não previsto é “pago” com uma folga no Serviço. Mais uma, a somar a tantas outras. Não podemos pagar horas extraordinárias a médicos do Serviço na Urgência, e recorremos a tarefeiros, sem grande possibilidade de escolha. Os nossos, vão fazer Urgências a outros hospitais, nos quais já é permitido serem pagos. Estas disposições legais têm algo de esquizofrénico. Não as entendo, mas vão-se mantendo no tempo.

Ser ineficiente no SNS, não é um destino português inevitável. O dinheiro do PPR pode ajudar. Mas não esqueçamos que o mais importante são as pessoas, e a forma como são aproveitadas todas as suas potencialidades . Com má organização do trabalho, deitamos tudo a perder!

João Araújo Correia – Presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna
Artigo publicado no jornal “Público” 30/06/2021