Elogio aos internos de medicina

Luís Campos

Sejamos claros: se não fosse a dedicação, disponibilidade, competência e sentido ético dos cerca de 1000 internos de Medicina Interna do Serviço Nacional de Saúde muitas urgências não teriam capacidade para atender doentes médicos, não havia possibilidade de garantir escalas para as urgências internas em muitos hospitais, os cuidados nos serviços de Medicina estariam comprometidos, da mesma forma que a actividade das  unidades dedicadas a patologias específicas asseguradas pela Medicina Interna, assim como o apoio aos serviços cirúrgicos e aos hospitais de dia. Se não fossem estes internos os cuidados aos doentes Covid-19 nas urgências e nas enfermarias poderiam ter colapsado.

Durante a pandemia enfrentaram um dos maiores desafios da saúde do pós- segunda Guerra Mundial, com a angústia do desconhecimento da gravidade da infecção, da sua contagiosidade, dos tratamentos que deviam prescrever, sofrendo na pele as fragilidades do sistema. Logo no seu início, estes internos tiveram que se desdobrar em dois circuitos nas urgências, asseguraram uma actividade de turnos durante o dia e a noite, adaptaram-se a uma arquitetura nova dos espaços, tiveram que acelerar a sua formação, passar muitas horas em enfermarias isoladas onde não podiam beber água nem ir à casa de banho, lidar com doentes angustiados que não podiam receber visitas e as respectivas famílias, tomar decisões de vida ou de morte, em alguns momentos, sem ninguém por perto.

A Medicina Interna assegurou e assegura, em Portugal, cerca de 80% dos doentes internados por Covid-19, além de ter que continuar a prestar assistência aos outros doentes não Covid.

Todos os que estiveram na primeira linha da resposta à pandemia, puderam testemunhar que os internos de Medicina Interna trabalharam de uma forma desprendida, com uma estoicidade admirável, enorme capacidade de trabalho, com humanidade na relação com os doentes e as famílias e um compromisso ético inquebrantável com os doentes.

Pelo conhecimento que tenho de muitos deles e da realidade dos serviços de Medicina, pela responsabilidade que tive na sua formação, pela minha preocupação com o futuro da Medicina Interna, não posso deixar de expressar a minha compreensão e a minha solidariedade, com as angústias e reivindicações dos mais de 400 internos de medicina interna portugueses na carta aberta que escreveram à Senhora Ministra da Saúde. Nesta carta, estes internos exigem “melhores condições formativas e de trabalho, uma remuneração que reflita a sua diferenciação, o cumprimento dos tectos máximos de horas extraordinárias e o cumprimento dos mínimos assistenciais nas equipas de urgência, de forma a poder dar resposta ao grau de exigência que nos é exigido, garantindo a segurança dos nossos utentes”.

As queixas contidas nesta carta são justificadas, expressam um sentimento partilhado e, lamentavelmente não são de agora, considero por isso que é urgente responder a estes anseios.

Esta especialidade é nuclear nos hospitais porque assiste a maior parte dos doentes médicos admitidos nas urgências, incluindo os idosos que sofrem de várias doenças, cujo número cresce exponencialmente, assim como os doentes com doenças sistémicas ou sem diagnóstico.

A sua actividade distribui-se entre urgência externa e interna, na assistência às enfermarias de medicina, em unidades dedicadas a patologias específicas, no apoio aos serviços cirúrgicos e aos hospitais de dia, na liderança das equipas de hospitalização domiciliária, na promoção de programas de cuidados integrados juntamente com os médicos de família. Para além disso os serviços de Medicina Interna são locais de formação de todos os médicos, antes de ingressarem na especialidade, de ensino de alunos na fase pré-graduada e são ainda centros de investigação. A necessidade de uma especialidade generalista no hospital como é a Medicina Interna com a sua versatilidade e mutipotencialidade é imprescindível para uma resposta eficiente, integrada e com qualidade aos doentes crónicos complexos, que são os grandes utilizadores dos hospitais, para liderar formas inovadoras de cuidados a estes doentes, e fazer a ponte com outros níveis de cuidados.  A sua importância ficou ainda mais patente durante esta pandemia, como é reconhecido em vários relatórios internacionais,

No entanto os internistas têm o problema de ter na história clínica e no exame objectivo as suas principais ferramentas, terem de abordar os doentes na sua totalidade, o que demora mais tempo, não têm oportunidade de aumentar o seu salário a fazer cirurgias no âmbito do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC), nem a fazer técnicas, nem recebem remuneração por produção adicional, como outras especialidades médicas, para recuperarem as suas listas de espera para consultas, que aumentaram quando estiveram em casa confinados. Nos períodos de Inverno têm que cuidar do dobro dos doentes internados, espalhados por todo o hospital, prolongando muito o seu horário, sem que recebam qualquer remuneração adicional.

Esta carta é um grito de desespero, quando estes internos veem que nada mudou: continuam a ser usados para “tapar buracos” nas escalas de urgência, assistem à saída de muitos dos seus formadores para o sector privado, sentem a sua formação comprometida, sofrem de burn out e não têm reconhecimento nem uma compensação justa. Os internos do internato geral sabem isso quando escolhem as vagas para especialidade, por isso muitas vagas de Medicina Interna ficam por preencher.

Não leio esta carta como um libelo contra ninguém, mas como a reivindicação dos internos de medicina interna por dignidade, por reconhecimento, por um melhor equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal, por melhores condições e tempo para formação e investigação. Leio esta carta como uma defesa de uma especialidade que tem um papel nuclear na organização hospitalar e vê o seu futuro comprometido. Este é um caminho que é urgente inverter para bem dos doentes, da eficiência, da qualidade e da segurança dos cuidados que prestamos.

Luís Campos – Ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna. Presidente da Comissão de Qualidade dos Cuidados e Assuntos Profissionais da Federação Europeia de Medicina Interna.

Este artigo foi publicado na edição de 26 de agosto de 2022 do jornal Público