Doença Vascular Cerebral e COVID-19 – Protocolo de atuação

Preâmbulo
A pandemia por COVID-19 está a condicionar as nossas vidas a nível pessoal, familiar, social e profissional. Perante os desafios que se colocam, e face às especificidades que a Doença Vascular Cerebral apresenta nas suas diferentes fases, urge adaptar os protocolos de atuação a esta nova realidade.

Embora o sistema de saúde esteja focado no controlo e tratamento da pandemia por COVID-19, é importante não descurar o tratamento das pessoas que continuam a ter as restantes patologias e, por isso, a necessitar de recorrer à assistência médica e aos Serviços de Urgência. Contudo, constatamos que a maioria dos pacientes idosos, diabéticos, hipertensos, obesos e com insuficiência cardíaca consideram os Hospitais como locais potencialmente não seguros e, por isso, evitam aí deslocar-se.

Mas, são estes os doentes que têm maior risco de AVC e de AVC’s mais graves. Por outro lado, a divisão do Serviço de Urgência, enfermarias e unidades diferenciadas em áreas COVID e sem-COVID tem também impacto na forma como os doentes com AVC agudo são orientados em contexto de Via Verde do AVC(VVAVC).

Esta é a realidade e, embora com heterogeneidade entre Centros, tem-se verificado uma redução no número de admissões em Unidade de AVC e de tratamentos de reperfusão em relação ao período homologo do ano anterior. Os tempos entre o início dos sintomas e a entrada no Hospital e os tempos porta-agulha podem também sofrer agravamento (seguramente podem ser alargados). Esta não é uma realidade apenas de Portugal. Tem sido descrita em vários centros europeus e norte-americanos. Num inquérito a 426 especialistas em AVC de 55 países, apenas 1 em cada 5 referem que os doentes com AVC estão a receber o tratamento habitual. A incapacidade de assegurar os cuidados adequados aumenta o risco de morte e diminui a hipótese de uma boa recuperação.

É essencial a adaptação a esta nova situação, não esquecendo que o AVC continua a ser uma emergência médica e que “tempo é cérebro”. Neste contexto específico o tempo não deve ser a única varável e a segurança do paciente e profissionais de saúde deve ser prioritária (“Protected Code Stroke” tal como definido pela American Heart Association).

O AVC pode também surgir como potencial complicação da infeção SARSCoV2: em duas séries de casos é descrito que 36% dos pacientes com COVD-19 têm complicações neurológicas, sendo as mais comuns tonturas, cefaleia ou encefalopatia;o AVC como complicação direta da COVID-19 aparecerá em 5.9% dos pacientes com uma mediana de 10 dias após o início de sintomas; e ainda, recentemente, no NEJM o relato de cinco casos, no período de 2 semanas, de admissões por AVC com oclusão de grande vaso em jovens (< 50 anos) todos com COVID-19.

No sentido de ajudar na adaptação a esta nova realidade e na tentativa de esclarecer alguns pontos dúbios, o NEDVC elaborou este protocolo, de acordo com as últimas orientações internacionais. Sendo esta uma circunstância em constante atualização tentaremos que, sempre que haja alterações, as mesmas sejam incorporadas neste protocolo.

Em concreto, devemos reforçar as campanhas de consciencialização da população e adaptar a abordagem do AVC à presente realidade. Esta adaptação pode estruturar-se em três momentos: pré-hospitalar, hospitalar e pós-hospitalar.

Protocolo de atuação

Campanhas de sensibilização da população

Necessidade de sensibilizar a população para os sinais de alerta de AVC e para o que deve ser feito em caso de suspeita de AVC. Realçar que os hospitais continuam a manter ativos os circuitos para tratamentos de doentes sem COVID19.
Apesar da necessidade de confinamento, perante sinais ou sintomas suspeitos de AVC não deixar de contactar o 112, ativando a Via Verde do AVC para referenciação correta e atempada aos serviços de emergência, de modo a permitir realização de terapêutica de fase aguda adequada, minimizando as sequelas. Não esquecer, a mensagem essencial, que o AVC é uma emergência médica.
Alertar para a necessidade de manutenção de terapêutica prescrita (antihipertensores, estatinas, antitrombóticos, terapêutica para diabetes), salientando que não há indicação para suspender qualquer das terapêuticas previamente prescritas, sem indicação de médico assistente.

Pré Hospitalar

Idealmente deve ser realizada notificação pré-hospitalar para preparação da equipa da VVAVC. Extremamente importante que a equipa do pré-hospitalar indague e obtenha o contacto telefónico de um familiar. Este deve ser registado na ficha de admissão do doente, de modo a permitir o contacto com a família sempre que necessário, quer para esclarecimento de história clínica, quer para prestar informações aos familiares, quer em caso de necessidade de autorização para tratamento ou ato médico.
Aquando da notificação, além dos sinais de ativação da Via Verde (FAST), da hora de instalação de défices, dos antecedentes do doente, fazer referência a possíveis sintomas de infeção por SARS-CoV-2 (febre, tosse, dispneia, mialgias, odinofagia, dor abdominal, náuseas/vómitos, diarreia, anosmia, disgeusia …) nos últimos 7dias, possível contacto com doente COVID-19+ nos últimos 14dias ou estado conhecido de COVID-19 (dados fundamentais para determinar a probabilidade pré-teste da COVID-19).

Hospitalar

Todos os profissionais de saúde, envolvidos no tratamento de doentes com AVC, devem fazê-lo de acordo com as Guidelines e recomendações de tratamento em vigor adaptando-se às circunstâncias atuais.
O tempo é um objetivo, mas não deve ser uma obsessão (time is a goal not an expectation), logo prudência na atuação.
Atuar de acordo com Protected code stroke: todos os doentes da VVAVC são, à partida (pelo menos enquanto história clínica não totalmente esclarecida, avaliação de possíveis contactos com doentes COVID-19 e exclusão de infeção por SARS-CoV-2), suspeitos COVID-19, o que implica cumprimento de medidas de isolamento de gotícula e de contacto através da utilização de equipamento de proteção individual adequado (óculos, máscara, luvas, bata descartável) na avaliação do doente. Colocação de máscara cirúrgica, sempre que possível, desde que doente sem entubação orotraqueal ou nasotraqueal. Dada a necessidade de gestão criteriosa dos Equipamentos de Proteção Individual (EPI), as equipas deverão ser reorganizadas, devendo um só profissional equipar-se para avaliar o doente, de preferência o mais diferenciado na abordagem ao doente.
Face à dificuldade na colheita de dados clínicos, quer pela condição do doente, quer pela impossibilidade de estarem familiares presentes no SU, um dos elementos da equipa da VVAVC deverá ficar com a tarefa de contactar os familiares e colher dados relativamente à hora de instalação dos sintomas e sua caracterização, bem como antecedentes e medicação do doente, assim como, questões relacionadas com possível infeção por SARS-CoV-2.
Introduzir questões relacionadas com: possível sintomatologia de infeção por SARS-CoV-2 (tosse, febre, dispneia, mialgias, odinofagia, dor abdominal, náuseas/vómitos, diarreia, anosmia, disgeusia …) nos últimos 7dias e possível contacto com doente COVID-19 nos últimos 14 dias, na abordagem inicial do doente da VVAVC, de modo a identificar os doentes com alta probabilidade de infeção por SARS-CoV2, avaliando nestes doentes a premência/possibilidade de realização de TC torácico aquando da realização de TC cerebral, direcionando o doente para área apropriada.
A realização do teste diagnóstico de infeção por SARS-CoV-2 não deve atrasar a administração de tratamento de fase aguda (trombólise e/ou trombectomia), se necessário poderá ser protelada realização do referido teste. Sempre que possível e disponível deverá ser realizar o teste molecular rápido.
Devem adotar-se cuidados específicos durante a realização dos exames de imagem, de acordo status COVID-19 (suspeito/positivo/não suspeito).
Na trombectomia mecânica utilizar preferencialmente a sedação consciente, versus anestesia geral, dados os riscos de aerossolização inerente à entubação orotraqueal, devendo o doente, sempre que possível, estar com máscara cirúrgica. Se se antevê necessidade de ventilação invasiva, deve antecipar-se a entubação orotraqueal, precavendo a sua realização na sala de angiografia, evitando também a ventilação assistida com ambu.
Necessidade de reformulação de serviços de urgência e do circuito do doente dentro do SU adaptados à circunstância de cada Centro, incluindo a reorganização do circuito do doente com Via Verde do AVC para doentes suspeitos ou com COVID-19 e circuitos independentes para sem COVID-19.
Nos centros com neurorradiologia de intervenção que funcionam em regime de prevenção rotativa, deve, sempre que possível, reforçar-se as equipas, alargando o horário de realização de procedimentos em cada centro, de modo a diminuir a necessidade de transportes inter-hospitalares.
A telemedicina, sempre que possível deve ser utilizada, de modo a minimizar transferências desnecessárias.
Se o doente tiver infeção confirmada ou suspeita elevada devem ser adotados os cuidados adequados e o doente seguir a via intra-hospitalar destinada a doentes COVID19 com admissão em enfermaria ou unidade dedicada de acordo com o nível de cuidados necessário. Nos casos suspeitos, o doente deverá ficar preferencialmente em área adequada ao nível de cuidados necessários (“área tampão”) até o resultado do teste ser conhecido, mantendo
apoio de equipa de AVC. Os doentes não suspeitos deverão ser internados, como anteriormente, em área dedicada.
Realizar gestão criteriosa das vagas de nível III (doentes com situações mais graves de enfarte cerebral, hemorragia cerebral ou hemorragia subaracnoideia).
Não esquecer que os doentes com AVC podem desenvolver infeção por SARSCoV-2 no internamento. Por isso, se surgir febre ou sintomas respiratórios, como acontece frequentemente nestes doentes noutras circunstâncias, devem ser avaliados em conformidade
A avaliação etiológica no internamento deverá ser mantida, de modo a permitir a realização de correta prevenção secundária

Pós- Hospitalar

Reforço da necessidade de adesão às medidas de prevenção secundária e identificação das dificuldades na sua implementação.
Retomar gradualmente o normal funcionamento das consultas, mesmo com a possível necessidade de manutenção de consultas “não presenciais”. Determinante a realização de exames auxiliares de diagnóstico (em alguns casos suspensos no decurso da pandemia), de modo a ser possível a realização de consulta com possibilidade de tomada de decisão e ajustes terapêuticos.
É imperioso que sejam feitas todas as diligências de modo a manter terapêutica adequada após fase aguda, nomeadamente o acesso a cuidados de reabilitação, tanto nos serviços hospitalares, rede nacional de cuidados
continuados e em ambulatório, de modo a minimizar o efeito desta pandemia no resultado funcional dos doentes.

Conclusão

Todo este contexto irá ter, certamente, reflexos nos cuidados prestados aos doentes com doença vascular cerebral e consequentemente no seu prognóstico. Só daqui a algum tempo será possível avaliar o impacto de toda esta situação, mas devemos documentar este potencial impacto, quer a nível de Centro e a nível Nacional.

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