Celebrar o centenário da descoberta da Insulina é celebrar a vida!!

Maria Filomena Roque
Assistente Hospitalar Graduada de Medicina Interna
Hospital de Santarém EPE

100 anos é muito tempo, muitos dias muitas horas a passar (como diária o poeta), foram anos de muito estudo, muito conhecimento sobre a fisiopatologia da diabetes, sobre a ação da insulina. Muita descoberta, muito aperfeiçoamento, muitos avanços científicos mas também tecnológicos, muitas vidas foram salvas, conseguiu-se redução da morbilidade, mas também quebrar tabus sobre a diabetes e a administração de insulina.

Quem hoje utiliza insulina e muitos dos que a prescrevem não imaginam o quanto se evoluiu na tentativa de a tornar “perfeita” e em tudo o mais semelhante possível à endógena.

Sim eu “ainda sou do tempo…..” em que tratar um doente com Diabetes muito pouco ou nada tinha de individualização terapêutica, porque poucos eram os recursos. A insulina só existia em frasco de onde os doentes tinham de retirar com seringa a dose a administrar, errando por vezes a dose. O diagnóstico de diabetes era quase como uma “sentença de morte”. Para os médicos era uma luta contra as hipoglicemias e as hiperglicemias, contra o desenvolvimento de complicações, contra a morte prematura; para os doentes e seus familiares eram imaginarem-se cegos e amputados, morrendo cedo e sem verem os seus filhos crescer. Não existia insulina, nem seringas grátis e além da modificação de vida nos indivíduos que a doença provocava o impacto económico era também importante, contribuindo para a má adesão à terapêutica, e consequentemente para o desenvolvimento de complicações e para a morte prematura.

Quando iniciei a minha atividade no tratamento de pessoas com diabetes e, isto já após ter terminado o meu internato de Medicina Interna, não vou mentir e direi que o fiz por muita insistência da Drª Terezinha Santos que no Hospital dos Capuchos considerou que o deveria fazer. Anos depois e muitas formações assistidas e dadas e muito estudo, posso afirmar que conviver e tratar pessoas com diabetes continua a ser um desafio diário para os profissionais que os tratam e para os doente; e isto apesar dos avanços quer no aperfeiçoamento das insulinas, nos dispositivos para a sua administração, ou de monitorização da glicemia.

Eu já não fui do tempo da D. Elvira, entretanto já falecida, que aos 13 anos teve o seu diagnóstico de diabetes e foi tratada e educada pelo Prof. Ernesto Roma. Com 60 anos de evolução de doença vinha sozinha à minha consulta e ficava muito preocupada sempre que o valor da sua HgA1c aumentava ligeiramente, e não se pense que os valores estiveram alguma vez acima dos 7,8%. Revia e discutia comigo até à exaustão, o que poderia fazer de diferente para reverter a situação. Apesar disso nunca quis utilizar canetas descartáveis, nem mudar da sua insulina NPH ou da regular, afirmando que “já faço há muitos anos e dou-me bem”. E eu, olhava maravilhada para aquela mulher pequenina e determinada vendo que, era possível viver bem e sem complicações graves durante muitos anos desde que se compreendesse a importância de aderir à terapêutica, tentando imaginar o quanto teria sido difícil para ela conviver com uma doença crónica numa época de poucos recursos, e como teria sido cumprir o regime terapêutico e o quão restritivo deveria ter sido o seu plano alimentar e como teria sido a adaptação daquela família a uma situação crónica numa época cheia de tabus.

Também não fui do tempo do Senhor Raul diagnosticado com diabetes aos 20 anos e que assistiu e usufruiu de toda a evolução quer da insulina quer da monitorização da glicemia e que afirma “agora é muito fácil… quando fui diagnosticado estive internado 3 meses no Hospital de Santa Maria…as hipoglicemias eram muitas…, até que finalmente conseguiram ajustar as doses de insulina…depois quando tive alta a coisa não foi fácil até que me indicaram o Dr Pedro Eurico Lisboa…”. Hoje utiliza, orgulhoso, as novas insulina análogas e aderiu com facilidade as novas formas de monitorização da glicemia. “. ..no início as seringas eram de vidro, partiam-se muito, as agulhas grossas, tinham de ser fervidas, como eu viajava muito em trabalho trazia sempre comigo uma lamparina para esterilizar tudo…não existiam testes para sabermos os valores da glicemia como hoje… e os primeiros a surgir foram na urina…” Hoje do alto dos seus 83 anos, e sem complicações graves da doença, envia por email dois dias antes da consulta os seus registos do “Libre” para os analisarmos calmamente e no dia da consulta, orgulhoso chama a atenção para o seu “tempo no alvo”. o qual efetivamente é fantástico. Faz palestras motivadoras para os nossos jovens e afirma “ se eu consegui chegar aos 83 anos sem grandes complicações e num tempo em que pouco tinha…vocês com o que têm hoje ao vosso dispor também vão conseguir, não é fácil exige alguns sacrifícios mas vale a pena…é possível depende sobretudo de nós queremos..”

Sr. Raul Pereira Teodoro

Apesar das modificações de vida que a Diabetes, como doença crónica que é, pode implicar, a variedade de insulinas que hoje temos à nossa disposição, e que representam muitos anos de descoberta e inovação, permitem nos utilizar esta ou aquela insulina consoante as necessidade individuais, consoante a profissão, a atividade física, as preferências.

Mas como seres humanos que somos, a insatisfação é uma das nossas características e enquanto médicos queremos doentes perfeitos, bem controlados e sem complicações, remédios perfeitos, insulinas que controlem a glicemia e não provoquem hipoglicemias e enquanto doentes além disto ainda que os regimes terapêuticos sejam simples, convenientes e mais flexíveis caso haja um atraso na administração de insulina.

Sempre gostei de filmes de ficção científica, para Banting e Macleod quando em 1921 utilizaram a Insulina, tudo o que temos hoje seria ficção, eu espero ainda conseguir, até porque a evolução cientifica não pára e a esperança de vida está a aumentar, ver e utilizar na minha prática clinica insulinas verdadeiramente inteligentes que sejam glicose responsivas e sim permitam aos indivíduos com diabetes serem verdadeiramente “livres”.

Então se temos tanta evolução porque ainda jovens têm complicações e morrem de diabetes? o que falta? Falta acesso igualitário e grátis à terapêutica a nível mundial, falta mais educação terapêutica, este será o grande desafio para o futuro.

Parabéns à Insulina!! parabéns a todos os que dedicaram horas e horas da sua vida ao seu conhecimento e aperfeiçoamento, parabéns aos doentes que ao entrarem em ensaios clínicos permitiram o seu desenvolvimento clinico.

Maria Filomena Roque
Assistente Hospitalar Graduada de Medicina Interna
Núcleo de Diabetes e Serviço de Medicina do Hospital de Santarém EPE