A insulina e os seus cem anos de existência

Fátima Pinto- Assistente Hospitalar Graduada Sénior de Medicina Interna – Hospital da Horta – Faial; Membro do NEDM

A propósito da comemoração dos cem anos da existência de insulina, neste ano de 2021, fui ao baú buscar algumas histórias, memórias e experiências vividas por mim ao longo da minha vida, já longa no que diz respeito ao tempo de existência de vida individual, mas que ainda se afigura curta face ao tempo de vida da nossa homenageada e centenária insulina.

Lembro-me bem da prima Rosa, do seu sorriso maroto, das suas bochechas rosadas e do seu ranger de dentes. Mulher do Norte com os seus mais de 50 anos de idade, usava uma linguagem que me deixava envergonhada nos meus 7 a 8 anos de vida. Muito gorducha e cheia de refegos, foi ela a primeira pessoa que conheci com Diabetes. Com Diabetes e a fazer insulina…Lembro-me de ouvir dizer que tinha uma doença muito difícil de tratar, que tinha sempre “o açúcar do sangue” muito alto, mas que por vezes passava muito mal porque tinha  muitas  “baixas de açúcar”. Nestas alturas compensava com comida e com uns docinhos para melhor as tratar, ou mesmo para as evitar. A culpa disto tudo era do tratamento que fazia com a insulina… Estávamos no início da década de 70, e pela minha idade de então, e obviamente, pouca ou nenhuma informação científica obtive nessa altura acerca do que se estaria a passar.

Mais tarde, já no Liceu, lembro-me de haver uma miúda que “era diabética”, muito magra, e que tinha muitas limitações na sua vida porque também fazia insulina. Parecia-me estranho porque era completamente diferente da prima Rosa. Teria eu para aí uns 12 anos de idade quando isto aconteceu. Foi o segundo contacto que tive com a Diabetes e com uma pessoa a fazer insulina.

Ao longo do meu tempo de Faculdade fui percebendo o que se teria passado com a prima Rosa, e com a miúda do Liceu.  Nunca mais ouvi falar da miúda do Liceu, mas a prima Rosa morreu alguns anos depois, pelo que percebi, com muitas complicações da sua Diabetes e da sua obesidade.

Mais tarde, já mais conhecedora e minimamente capaz de saber como se tratava a Diabetes, tive contacto com alguns doentes tratados com insulina. Andaria eu então perto dos 23 anos de idade. Ainda que tivesse conhecido as seringas de vidro e as agulhas que era preciso esterilizar, já sou do tempo em que as seringas utilizadas eram de plástico, as famosas Plastipak, o que já era considerado um grande avanço para a altura, mas que implicava preencher a seringa com a dose devida, todas as vezes que era necessário injetar insulina, retirando-a de um pequeno frasco. Depreendo agora que a prima Rosa teria usado as suas seringas de vidro, ou quando muito as de plástico, tal como a miúda do Liceu, e percebo agora as dificuldades em qualquer uma delas ter uma vida “normal”. Mais ainda, tenho hoje curiosidade em saber como fariam, a prima Rosa e a miúda do Liceu, os seus controlos da Diabetes, nomeadamente como fariam para acertar as doses de insulina, já que, e durante muitos anos, eram as pesquisas de glicose na urina que orientavam os doentes, e mais tarde quando surgiram os primeiros glucómetros, estes não eram fáceis de obter e eram muito mais difíceis de manusear do que os atuais. Estávamos ainda muito longe de ter os bons apoios que temos hoje, não só no que dizia respeito ao meio utilizado – urina em vez de sangue, com as implicações daí inerentes – tal como à facilidade e à rapidez na obtenção dos resultados que lhes permitissem estar mais perto da “realidade glicémica” do momento. De lembrar também que as leituras dos resultados dos testes de urina eram por espectro de cores, e portanto apenas aproximados de um determinado valor.

Tinha já eu mais alguma formação na área da Diabetes, já pelos meus 30 anos, quando fui aos Estados Unidos da América, ao Congresso da ADA (American Diabetes Association), penso que em San Francisco, e me apercebi que muito tinha mudado no tratamento da Diabetes tipo 1, insulinodependente, ao ouvir discursar numa das sessões do congresso, a Miss América, jovem, elegante e bonita, que nada se parecia com a prima Rosa… Mesmo sabendo que não seria propriamente a mesma situação clínica, e não tendo mudado em nada o meu afeto e carinho pela prima, foi muito bom perceber que até se podia ser Miss, neste caso na América, sendo diabética… Não era o facto de ser “Miss” em si, mas tudo o que estava ligado ao sucesso pessoal e à disciplina e aparente bem-estar que a jovem palestrante apresentava. E qual era a chave deste enorme sucesso? Obviamente a resposta estava na maior facilidade em manusear o tratamento com insulina. Confesso que foi um marco na minha vida, já que naquela altura a minha experiência com pessoas com Diabetes tipo1, e com insulinotratados, e neste caso ainda por cima sendo a Miss uma portadora de bomba de insulina, era relativamente pequena. Estávamos portanto já muito longe do ano da descoberta da insulina, e das imagens da magreza dos primeiros doentes tratados com insulina, que ficavam na retina de quem se lembrava das aulas de História da Medicina, da descoberta da insulina, ou melhor do seu isolamento por Banting e Best,  e dos primeiros doentes tratados com o extrato pancreático conseguido na altura, ou pior ainda dos doentes que, se não tratados, por inexistência do tratamento adequado, morriam pelas complicações da sua Diabetes. Aproximávamo-nos já, com a realidade da Miss, mais de muito de que temos hoje, mas estávamos já bastante longe das seringas da prima Rosa, e da miúda do Liceu.

Muito se evoluiu desde 1921, e muito foi preciso fazer para poder proporcionar aos nossos doentes a administração de uma insulina cada vez mais segura. Um pouco por todo o mundo foram surgindo avanços que permitiram formulações que pretendiam  uma cada vez maior eficácia no tratamento e um menor aparecimento de efeitos secundários : da insulina bovina utilizada nos primórdios, às atuais insulinas, passando pela associação de zinco, de protamina, pela determinação sequencial de aminoácidos e pela configuração espacial da molécula de insulina, pela produção de insulinas humanas  sintéticas e recombinadas, aos atuais análogos de insulina, muito esforço, muito trabalho e muitas pesquisas foram feitas para que se pudesse avançar no conhecimento, como se avançou.

Ao longo dos meus agora já muitos anos de seguimento e tratamento de pessoas com Diabetes, tive já várias e diferentes reações dos meus doentes às propostas que fiz para início de tratamento com insulina.  As que me deixavam mais preocupada eram as das pessoas que sentiam que eu lhes estava ler a sentença de morte, e que, ao ouvirem falar de tratamento com insulina quase se despediam de todos os seus familiares… Felizmente que já lá vai esse tempo, e que atualmente existe uma maior recetividade a este tipo de propostas, até porque cada vez mais o tratamento com insulina se faz em alturas diferentes da evolução da doença. O positivo reverso da medalha das histórias deprimentes dos doentes que aceitavam quase chorando a proposta de tratamento com insulina, era quando, sintomáticas que estavam, deixavam de o estar, e se sentiam pessoas diferentes muito menos sintomáticas, e por isso muito mais felizes.

A prima Rosa, se fosse viva, perceberia por isso, a grande diferença no tratamento da Diabetes nos dias de hoje, sobretudo por saber que ao longo das últimas décadas muito se evoluiu para melhor tratar os doentes. Não só tendo cada vez mais e melhores insulinas fruto da evolução referida, como melhorando os dispositivos que contêm a insulina, ao passar dos frascos de insulina e das seringas de plástico para as canetas recarregáveis de cartucho, ou posteriormente para as canetas descartáveis, ou melhorando as características das agulhas, de forma a tornar a administração de insulina mais fácil.  Não esquecendo claro, os atuais sistemas de perfusão contínua de insulina, as “bombas” da Miss América. Também esses sistemas, e mesmo sabendo que não são para todos os doentes, são fruto de uma evolução continua no conhecimento daquela molécula / substância que se chama insulina, que se tem mantido ao longo de todos estes cem anos de existência…Mas sobretudo, a prima Rosa saberia que a evolução foi de tal forma, que existe hoje um tipo de insulina cada vez mais adequada ao perfil de cada doente, com o objetivo de cada vez mais se aproximar daquilo que seria a resposta de um pâncreas não diabético, ao estímulo de uma qualquer refeição de modo a manter a euglicemia. Saberia assim, de toda a evolução que as insulinas tiveram ao longo de todos estes anos, no que diz respeito à sua estabilidade, tempos e duração de ação e à tecnologia atualmente disponível para que no tempo mais real possível, se possa atuar da melhor maneira para controlar a glicemia do momento e das horas seguintes. Saberia também que algumas formulações ficaram pelo caminho, ou não tiveram o sucesso que se pretendia, como foi o caso das insulinas inaladas, para tentar facilitar ainda mais a via de administração, mas que globalmente o sucesso está à vista!

Muito mais se poderia falar acerca dos avanços dos últimos cem anos no tratamento da Diabetes, e no que diz respeito ao tratamento relacionado direta ou indiretamente com a insulina, mas não caberia no âmbito destas minhas memórias, em jeito de homenagem.

Parabéns, pois, à insulina e aos seus 100 anos de existência, e à sua “descendência” com as mais velhas e as mais novas insulinas, que muito fizeram para melhorar a qualidade de vida das pessoas com Diabetes, e assim contribuíram para uma maior longevidade e qualidade de vida dos mesmos. Não sei que mais novidades poderão vir no futuro, e mesmo sabendo que outras novidades estarão prestes a surgir, uma coisa é certa: a insulina revolucionou o tratamento dos diabéticos em todo o Mundo!

Artigo da autoria de Fátima Pinto
Assistente Hospitalar Graduada Sénior de Medicina Interna
Hospital da Horta – Faial
Membro do NEDM