O que resolve a criação de uma especialidade de Urgência?

Assistimos há dias, num canal televisivo de grande audiência, a uma reportagem com os promotores da criação duma Especialidade de Urgência em Portugal, com a colaboração do Senhor Bastonário da Ordem dos Médicos. Foi transmitida em horário nobre, incluída num bloco informativo, como se tratasse de um tema de investigação. Afinal, depois de a ver, tratava-se de um spot promocional. Não há dúvida que a peça jornalística estava bem feita, com imagens da azáfama habitual dos Serviços de Urgência, em que o médico tem de ter uma atuação técnica rápida e precoce, ao mesmo tempo que dá a mão ao doente assustado, fragilizado pela doença e pelo ambiente hostil. A mensagem que era passada, é que uma atitude assim, competente e eficaz, só era possível porque aquele hospital tinha uma equipa dedicada á Urgência, na sua maioria especialistas de Medicina Interna, mas com uma diferenciação em Medicina de Urgência. Passe a presunção inerente às palavras do interlocutor, escapou ao jornalista a oportunidade de indagar a razão daquele modelo só ali poder ter sido aplicado e de, após 10 anos de tão boa experiência, não tenha sido replicado pelo País. Mas, para os mais atentos, o que ouvimos como argumentos para a criação de especialidade de Urgência, foram essencialmente estes:

– Há médicos a trabalhar na Emergência pré-hospitalar que não têm uma carreira definida;

– Muitos médicos que não tiveram acesso a um lugar de especialidade trabalham como tarefeiros indiferenciados na Urgência;

– Só cinco Países Europeus não têm a Especialidade de Urgência;

Se conseguirmos analisar o conteúdo destes objetivos, sem as distrações das imagens bem montadas, vemos que nada disto resolve nenhum problema das nossas Urgências. Não interessa às pessoas que acorrem às centenas aos hospitais (6,36 milhões em 2018), sem qualquer triagem médica prévia, aterrados por não saberem se têm uma doença grave ou sintoma sem importância. Não serão internados mais rapidamente nos Serviços de Medicina, em que 90% dos doentes provêm do SU, se a equipa de Urgência for dedicada, constituída por “Urgencistas”, sem ligação ao Serviço. Pode até ter uma alta indevida, e comprometer a continuidade de tratamento.

O País deve orgulhar-se do seu SNS, cuja capacidade de resposta ficou ainda mais evidente com a pandemia de COVID-19. Todos os Hospitais tiveram de se reinventar no ambulatório, no internamento e na urgência. No Serviço de Urgência, tivemos de passar a ter três áreas distintas (Covid-19, Respiratórios e Não Covid), dividindo as equipas médicas, muitas vezes já reduzidas. Foi um esforço extraordinário de superação, em cima dos problemas organizativos já conhecidos, e não resolvidos, das Urgências. Considerar que isso não aconteceu em Portugal inteiro, é uma tremenda injustiça e uma irresponsabilidade numa declaração pública, porque lança o anátema da desigualdade na qualidade de acesso aos cuidados de saúde, conforme a área geográfica em que o doente se encontra.

Ao contrário da maioria dos Países Europeus, Portugal e Espanha preservaram um modelo de exercício de Medicina Interna de cariz generalista, adaptado ao doente complexo, idoso, com multimorbilidades. Têm o Internista com a resposta certa para os desafios atuais e futuros de uma população envelhecida, que precisa de um único médico o compreenda e trate, com senso e competência. A Medicina Interna é a especialidade hospitalar mais numerosa (14% dos especialistas hospitalares), com cerca de 1000 Internos em Formação Específica, sendo a base confiável do SNS em muitos setores, nomeadamente na Urgência, desde há vários anos. Em Dezembro de 2020 as Direções da SPMI e do Colégio de Especialidade de Medicina Interna fizeram um referendo ás convicções sobre o SU dos Especialistas e Internos, tendo sido obtidas 787 respostas. Quando lhes foi perguntado se o trabalho na Urgência dava um contributo essencial para a sua formação como Internistas, 86,7% concordaram, em todos os escalões etários. Também quando se perguntava se a saída de Medicina Interna do SU seria uma perda irreparável para os doentes na realidade portuguesa, 78% não tiveram dúvidas de o afirmar.

A Medicina Interna continua disponível para assegurar o seu papel central no Serviço de Urgência, mais ainda enquanto os Cuidados Primários não conseguirem dar resposta eficaz á doença aguda ligeira a moderada. A necessidade de constante melhoria, levou-nos a fixar Critérios de Certificação de Urgência, de forma a garantir formação nas áreas da transferência intra e inter-hospitalar e trauma, identificadas como deficitárias. Esse processo de certificação,  já foi iniciado na SPMI, e está aberto a todos os Internistas que se queiram candidatar.

A criação de uma nova especialidade deve ser um processo refletido e sério, imune a interesses corporativos ou de oportunismo político. Uma Competência, não é igual a uma Especialidade médica. Não podemos confundir os nossos interesses com os da população, que apenas quer ter atendimento mais célere e competente no Serviço de Urgência. Devemos dar formação aos tarefeiros e contratá-los como especialistas. Não queiramos imitar os outros Países que não têm uma Medicina Interna como a nossa. Experimentemos, por uma vez, ter orgulho em nós!

Artigo publicado no HealthNews
João Araújo Correia, Médico Internista, Presidente da SPMI
(31/03/2021)